sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Imagens

Imagens
por Matheus Rocha

I

A luz da manhã penetrava em seus primeiros raios nos cômodos do apartamento. O dia, enfim, começava a clarear, depois da fria e escura noite passada. Ao bater a luz, o lugar parecia ganhar vidas, cores e formas próprias. A arrumação era feita de modo que o espaço se mostrasse para quem o visse de dentro. Visto de lá, o chão parecia longe em relação ao seu lugar. Não sabia o que pensar naquela hora, ali, naquele lugar sustentado.
Foi ao parapeito da varanda. De lá observava tudo, com aquele olhar de fotografia, congelado. Via o que acontecia, se divertia com aquela bagunça. Não era visto, não pelos que passavam lá em baixo. Havia um vento quente circulando àquela hora da manhã. Respirou fundo. Era o começo de mais um dia, o começo da sua ignorância cotidiana.
Se sentia um fantasma vagando pelo apartamento àquela hora da manhã. Morava sozinho, estava estranhamente acostumado com aquele ritual matinal. Devia ser o único acordado dos moradores do prédio naquele horário quase madrigal. Dirigiu-se à mesa de bebidas, colocou uma dose de uísque forte. Precisava acordar, depois da noite anterior. Não conseguira dormir direito por pelo menos três noites seguidas. Era o primeiro dia de um final de semana que tinha tudo para ser torturante. Ainda esboçou um sorriso irônico, quase tímido, ao pensar naqueles dias.
No dia passado havia mandado flores, que não sabia exatamente se teriam chegado ao destino certo. Procurou mais algum resquício da noite, procurou em vão. Logo se esqueceu de procurar. Os olhos procuraram pela sala algum retrato, alguma imagem, algo que lhe pudesse trazer de volta ao hoje. Algo que desse forma a seu presente. Estava nitidamente irrequieto com aquele turbilhão de pensamentos matinais que nos afetam diariamente ao acordarmos. Era um náufrago em sua própria ilha.
Pensou ainda estar com sono, o que era normal para aquela hora do dia. Mas era uma vaga mentira para aturdir seu vazio. Deu um gole rápido no copo à sua mão. Sentiu o líquido quente percorrer sua garganta, invadindo seu corpo rapidamente. Precisava sentir-se vivo outra vez. Não sabia dizer ao certo o que estava acontecendo. Sabia que queria ficar ali, permanecer por um bom tempo longe do chão.
Ligou o som, ouviu o que parecia uma marcha fúnebre. “Parece que me escutam” pensou ele. Logo viu a chance estendida à sua frente. Sentou-se ao lado do rádio, bebeu mais um pouco do uísque. Prestou bastante atenção no concerto que ouvia. Concentrou-se. Fechar os olhos foi o próximo passo. Sentiu a calmaria do alto onde estava. A música penetrava lentamente em seus sentidos. O escuro que se apresentava a ele não tardou de encurtar-se e logo deu lugar a um deserto.

II

Logrou a tomar a decisão de vagar no deserto. Sua caminhada começou com o primeiro passo, sempre o mais difícil. Sentia-se alheio a tudo aquilo à sua volta. Não reconhecia aquele lugar, nem em seus mais altos sonhos já vira tal local. Sua sensação de ser fantasma aumentou naquele momento. Estava quente, como era de se esperar. Avançou com o primeiro passo, e sentiu as areias do deserto penetrar entre seus dedos dos pés. Sentiu também o vento brincar com seus cabelos, jogando-os para todos os lados. Ainda tocava sua pele, como se o acariciasse carinhosamente. Levou adiante seu corpo.
Começou lentamente a caminhada, rumo a não sabia o que ou a quem, ou mesmo a onde. Mas começou, e isso era um passo importante. Permitiu-se sentir as sensações mais de perto, mais próximas de si. Olhou curioso para os lados, para trás, para cima. Parecia não haver nada. A sensação fantasmagórica o invadia cada vez mais, deixando transparecer em seu rosto. Mais uma vez, procurou em volta alguma coisa. Precisava ter a sua segurança dentro daquele desconhecido. Viu-se sozinho. Mas aquela solidão não era por sua conta própria, era uma outra solidão. Sentiu medo de estar ali. De impulso, viu-se correndo e olhando para trás.
Tinha uma certeza agora: corria de algo que não sabia o que era para algo que também não tinha idéia. Desesperou-se ainda mais. Jogou suas forças para as pernas, correu o mais rápido que pôde. Ia para qualquer lugar, e para lugar nenhum ao mesmo tempo. Correu o que parecia longos minutos, desesperado. Esqueceu-se de que pretendia sentir tudo o que podia. Algo o impedia de tal feito.
Até que avistou o que parecia ser uma velha cabana. Estranhou ver aquilo no meio do deserto. Pelo menos de longe, era o que parecia ser. Mudou de semblante. Não estava mais assustado, veio uma sensação agradável, de conforto. Não deixou-se ancorar por muito tempo naquele espaço, e foi em busca daquele lugar, um oásis diria. Agora não tinha nem um pouco de calma, tinha que ir rápido. Era acostumado a se sentir seguro, dono da situação. Nem de longe aquela situação em que se encontrava era favorável.
Não desgrudava os olhos, nem o pensamento, na velha casa. Agora, tudo parecia convergir ao mesmo ponto no espaço. Agora, tudo o que desejava havia se tronado material. Era real, enfim. Deu uma gargalhada solta, ecoou por todo o deserto. Finalmente estava indo de encontro à segurança. Isso era inquestionável para ele. Sentia-se profundamente alegre, saiu daquele desespero que o perseguia pelo caminho.
O que lhe parecia um lugar, como sempre, virara obstáculo. Pareceu-lhe que o deserto agigantara-se de repente. Não teria mais fim. Parecia não mais sair do lugar. Era ele contra o deserto, o deserto contra ele. Para ele, era só uma questão de tempo chegar à velha casa ao longe. Talvez nem sequer tenha pensado que para o deserto, era apenas mais um ser que pisava em suas areias, e sentia-se dono. O homem estava entregue a sua luta, talvez interminável, contra aquele mar de areia. Esquecera do calor, do desespero, do medo que se encontrava. Tinha apenas a chegada em mente, não queria saber do meio.
Não era um lugar sustentado. Não era um ser sustentado, como ele. Não lhe tenha ocorrido de pensar que o silêncio daquele lugar era apenas silêncio, sem nenhuma explicação? Era detestável viver sem explicação. Tudo acontece como deve acontecer, e lá não era diferente. Seu cotidiano era afetado por insegurança e medo, talvez por isso tenha corrido para a projeção que tenha feito. Sim, tudo era uma projeção.
Ele teve a ligeira impressão de que quanto mais corria, mais distante ficava de seu objetivo. A velha casa escapava-lhe por entre a areia do deserto. Não deixou a frustração alcançar-lhe. Tentou mais depressa, caiu acabado. Seu rosto foi direto de encontro a quente areia do deserto, estava sem forças. O deserto ganhara enfim.

III

A marcha cessara de tocar naquele instante. Ele abria os olhos, lentamente. Enxergou-se novamente em seu apartamento sustentado. Estava confuso sobre o que o deserto queria lhe dizer. Sabia que era uma estória que não ia esquecer-se tão facilmente. Permaneceu sentado, mas desligou o rádio. Olhou o relógio, não havia se passado muito tempo como havia pensado antes. Aquilo lhe pareceu tão demasiado grande para ter acontecido em curtos minutos!
Talvez não fosse necessário compreender de imediato o sentido do deserto. Foi apenas jogado ali. Nada mais. Pensou que o deserto, por ser grande, deu-lhe a estranha impressão de que tudo era rápido, como os grãos de areia que voavam constantemente. Ou poderia ser exatamente o contrário. Considerou por muito tempo esse pensamento. Pelo menos uma coisa ele acreditava ter sido aparecida em sua frente durante aquela estadia no deserto. Ele sabia agora. Não era uma mera impressão casual. Aquela experiência deixara suas marcas, como todas as outras. Mas, diferente das outras, ele havia vivido (ou, pelo menos, pensado que tenha vivido) aquilo tudo. E o sentido sempre aparece quando vivemos as experiências em totalidade.

Xadrez

Xadrez
por Matheus Rocha

O sorriso forçosamente pintado em seu rosto tentava explicar a figura recostada na calçada. Parecia estar estragado, ou coisa do tipo. Vencido, passado da validade. Estava estranhamente “sujo”, com partes pinceladas por carvão. No fundo, o branco; na superfície, carvão. O contraste da pintura, preto e branco, era o que dava vida à figura. Aquela fantasia era tudo o que tinha.
Era carnaval. Já havia esquecido qual dos dias era. Julgava ser a quarta-feira de cinzas, pelo seu estado. A festa rolava solta lá pelas tantas da manhã. Observava o movimento das pessoas indo e vindo. Não parecia querer mudar sua posição, ali recostado em algum ponto da cidade. Esquecido. A festança rolava solta na rua. Ele parecia nem ligar para os acontecimentos. Nada parecia atrapalhar sua visão absorta, se é que estava vendo alguma coisa. Era um pierrot. Mais um no meio da multidão.
O sorriso pintado pelo negro não estava desbotado, pelo contrário, parecia querer saltar de seu rosto. A fantasia era quem ganhava vida no carnaval, assim como todas as outras. Mas diferentes dos outros, a fantasia era ele. A sua fantasia tinha vida própria. Ele misturava-se com sua fantasia. Cada recorte fantasioso era um pedaço dele, e ele era um pedaço da fantasia. Eram um só. Acompanhava com o olhar as máscaras que via à frente. Tentava buscar um sentido para aqueles recortes. As extravagâncias reinavam soltas na rua. Era tudo permitido. Eram outras fantasias que faziam parte da rua, que era só um adereço adicional da festa. Ele não parecia estar alegre, só o vivo sorriso negro era visto. Diria ser um sorriso irônico.
Os sorrisos que provinham das máscaras ao seu redor eram mais verdadeiros do que os escondidos atrás delas. Bastava uma leve distração comum, e ninguém percebia o fato. Os símbolos têm linguagem própria e logo se adivinhava o que estava por trás deles. Ele parecia lembrar e esquecer, num piscar de olhos. Não se comprometia. Soltou um grande sorriso sarcástico, uma gargalhada. A multidão nem parou para observar. E ele ria. Cada vez mais fundo olhava para aqueles que iam de encontro a ele. Nada falava, nem gesticulava. Sua fantasia, e seus olhos, falavam por ele. Nada disse.
O pierrot levantou-se. Ficou parado contemplando o horizonte de máscaras que se estendia à sua frente. Seu olhar frenético parecia percorrer os mais ínfimos cantos daquele mar de signos. Rumou contra a multidão, dava passos precisos, quase calculados. Com as mãos para trás, como que atadas. Com o sorriso dando cartão de visitas, caminhou. Misturou-se à multidão.
Ao caminhar por entre estranhos, aqueles velhos desconhecidos de longa data, tentou captar o que estavam mostrando aquele colorido inerente àquelas pessoas. Havia barulho intenso, típico barulho de quem não tem nada a dizer. Passou o pensamento de que ele também era alheio às outras pessoas, do mesmo jeito que ele pensava deles com ele. E sorriu. Talvez interpretassem que era normal aquele sorriso, devido à época do ano em que se encontravam. Se mesmo as fantasias nada queriam dizer realmente sobre quem estava por baixo delas, o que dizer de um sorriso?

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Poesia de Inverno

Um bom inverno.
Sentimento eterno.
E um pouco do inferno.

sábado, 14 de agosto de 2010

A Espera

A Espera
por Matheus Rocha

A penumbra começava a fazer-se presente no quarto. Anoitecia lentamente, o que fazia crer que o tempo também assim prosseguia junto. Os segundos pareciam demorar mais do que o habitual. As janelas abertas deixavam penetrar o vento obscuro do outono. A pequena vela estava ao seu lado, plácida e firme como sempre. Tinha certeza de que estava palidamente sombria, ainda mais com a vista que se deixava ver atrás dela. O céu tremendamente escuro, o sol caindo ao fundo. A calmaria instalara-se lá fora, dentro do quarto nada se passava. Sabia que se aproximava, cada segundo a mais era um a menos. E tudo parecia correr bem.
Os lençóis, limpos e brancos feito neve, não iriam se sujar. Formas e cores já não faziam mais sentido algum. Nada faz sentido algum. Nada. O que a levaria? Lembranças adormecidas por muito tempo, que pareciam perdidas para sempre, vieram-lhe a consciência. Deixou-os passar livremente, e logo vieram outros. Era ininterrupto. Já estava à espera.
O quarto, seu quarto, tinha colorações em tons roseados. Redecorou inúmeras vezes aquele espaço. Queria que tivesse a sua cara, o seu jeito. Gostava de estar ali. A mobília, escolhida por ela; a decoração, os jogos de cama, tudo fora ela. E agora, que tudo isso se fora, era apenas espaço vazio. Oco. Ela agora estava mais parecida com um ornamento morto dentro daquele espaço em forma de quadrado que tanto tentara fazer algo seu. Ela não sabia se fazer espaço. Queria que o espaço se fizesse dela. Não conseguia reconhecer-se fora de algo. Era só aquela densa e pálida figura recostada em uma das extremidades do quarto.
Deixava os cabelos caídos sobre os ombros. Preferiu colocar a cabeça por entre as pernas e esperar. Os braços sobre a cabeça a deixavam inerte, absorta em si. Desconfigurada ela se sentia. A casa em que sempre morou parecia totalmente alheia a ela. Sentia que ficara gélida, sem expressão, a cada volta do sol. O vento trazia o gelo que agora batia dentro de si. Agora a escuridão era plena.
Há dias que chorava compulsivamente. Não sabia porque. Levantou a cabeça, viu-se ao fundo. Conseguia distinguir apenas alguns borrões em meio à penumbra. Nada via claramente, com precisão. Não tinha mais forças, estava ansiosa pela chegada. Sabia que essa era a certeza pela qual deixou-se enganar toda a sua existência. Passara a vida apegando-se a distorções, cacos daquilo que se mostrava para ela.
Deixou pender a cabeça para o lado. Escapou um grito seco, quase sem vida, sem forças. Parecia querer ouvir o som do próprio grito. Ouviu um leve eco, que trazia de volta a ela aquele espanto oferecido pelas palavras. Seus dentes agora se batiam. Os lábios, roxos e secos, agora demonstravam a face daquela figura que vira parada à porta. Vira seu vulto. Mas sabia que tinha chegado, enfim. Deu um sorriso com o canto da boca. Virou a palma da mão para cima, cerrou o punho levemente, nem sequer chegou a tocar os dedos uns nos outros. Suas pupilas dilataram-se. Sua boca aberta encontrou-se com o chão, dando o último beijo. Sentiu um leve torpor tomar conta de seu corpo. Levou os olhos de encontro ao vidro atrás de si. Viu a luz da lua pairar sobre aquele sórdido pedaço de vazio que se encontrava. E, abençoada pela luz sombria da lua, partiu.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010