Xadrez
por Matheus Rocha
O sorriso forçosamente pintado em seu rosto tentava explicar a figura recostada na calçada. Parecia estar estragado, ou coisa do tipo. Vencido, passado da validade. Estava estranhamente “sujo”, com partes pinceladas por carvão. No fundo, o branco; na superfície, carvão. O contraste da pintura, preto e branco, era o que dava vida à figura. Aquela fantasia era tudo o que tinha.
Era carnaval. Já havia esquecido qual dos dias era. Julgava ser a quarta-feira de cinzas, pelo seu estado. A festa rolava solta lá pelas tantas da manhã. Observava o movimento das pessoas indo e vindo. Não parecia querer mudar sua posição, ali recostado em algum ponto da cidade. Esquecido. A festança rolava solta na rua. Ele parecia nem ligar para os acontecimentos. Nada parecia atrapalhar sua visão absorta, se é que estava vendo alguma coisa. Era um pierrot. Mais um no meio da multidão.
O sorriso pintado pelo negro não estava desbotado, pelo contrário, parecia querer saltar de seu rosto. A fantasia era quem ganhava vida no carnaval, assim como todas as outras. Mas diferentes dos outros, a fantasia era ele. A sua fantasia tinha vida própria. Ele misturava-se com sua fantasia. Cada recorte fantasioso era um pedaço dele, e ele era um pedaço da fantasia. Eram um só. Acompanhava com o olhar as máscaras que via à frente. Tentava buscar um sentido para aqueles recortes. As extravagâncias reinavam soltas na rua. Era tudo permitido. Eram outras fantasias que faziam parte da rua, que era só um adereço adicional da festa. Ele não parecia estar alegre, só o vivo sorriso negro era visto. Diria ser um sorriso irônico.
Os sorrisos que provinham das máscaras ao seu redor eram mais verdadeiros do que os escondidos atrás delas. Bastava uma leve distração comum, e ninguém percebia o fato. Os símbolos têm linguagem própria e logo se adivinhava o que estava por trás deles. Ele parecia lembrar e esquecer, num piscar de olhos. Não se comprometia. Soltou um grande sorriso sarcástico, uma gargalhada. A multidão nem parou para observar. E ele ria. Cada vez mais fundo olhava para aqueles que iam de encontro a ele. Nada falava, nem gesticulava. Sua fantasia, e seus olhos, falavam por ele. Nada disse.
O pierrot levantou-se. Ficou parado contemplando o horizonte de máscaras que se estendia à sua frente. Seu olhar frenético parecia percorrer os mais ínfimos cantos daquele mar de signos. Rumou contra a multidão, dava passos precisos, quase calculados. Com as mãos para trás, como que atadas. Com o sorriso dando cartão de visitas, caminhou. Misturou-se à multidão.
Ao caminhar por entre estranhos, aqueles velhos desconhecidos de longa data, tentou captar o que estavam mostrando aquele colorido inerente àquelas pessoas. Havia barulho intenso, típico barulho de quem não tem nada a dizer. Passou o pensamento de que ele também era alheio às outras pessoas, do mesmo jeito que ele pensava deles com ele. E sorriu. Talvez interpretassem que era normal aquele sorriso, devido à época do ano em que se encontravam. Se mesmo as fantasias nada queriam dizer realmente sobre quem estava por baixo delas, o que dizer de um sorriso?
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