domingo, 12 de setembro de 2010

O Andarilho e a Musa

O Andarilho e a Musa
por Matheus Rocha

I – O Andarilho

Pouco se sabia sobre ele. Era um andarilho da noite. Quase um eremita. Sua longa barba e suas vestes longas e negras eram suas marcas. Sabia-se que gostava de beber vinho. Não era um beberrão, não do tipo que bebia até cair. Solitário, por sinal. Mal se via ele com outras pessoas, a não ser se estivesse num bar, mas ninguém junto a ele. Tampouco era chato. Por beber solitariamente nas tavernas, era silencioso. Mal reclamava.
Morava num quarto de pensão, alugado. Apesar de morar num lugar fixo na cidade, era conhecido como andarilho. Fazia suas andanças pela cidade, principalmente à noite. Tinha poucos pertences. Levava consigo sua túnica que usava, um pequeno baú, um caderno com penas e tintas e um alforje. Dinheiro também não parecia ser problema, já que pagava em dia a pensão e as bebidas. Bebia não para afastar os males. Mais parecia um romântico neoplatônico. Apesar de sua aparência ser a de um velho senhor, seu espírito, este sim, era o de um jovem amante! Amante da bebida e das mulheres. Não era um cafajeste.
Bebia mais à noite. Parecia não ter nenhuma ocupação fixa, apesar do dinheiro, que não se sabia de onde o velho tirava. Durante o dia, escrevia em seu caderno, que mais parecia ser um diário próprio. Não recebia visitas, parecia não ter parentes próximos. Na cidade se dizia que era um doente, não sabia nem quem era. Ele nem ligava.
Certa feita, tal homem, após suas lendárias excursões noite e madrugada adentro, encontrava-se andando, solitário como havia de ser, numa das ruas mais movimentadas da pequena cidade, uma rua cheia de tavernas. Entrou numa que diria ser uma casa abandonada, se não fosse pelo movimento constante que se encontrava.
Adentro do estabelecimento quase cheio, o andarilho sentou-se num lugar longínquo e escuro da taverna, onde a intensidade da luz, embora vinda de lampiões e castiçais cheios, era fraca. Lá ficou por longos e demorados minutos, parecia comovido. Sua expressão absorta quase o denunciava. O movimento na taverna crescia cada vez mais a todo o momento, as conversas em tom alto, quase estrondeante dos ébrios ali presentes, o barulho de copos quebrando... Nada parecia incomodar o velho.
Depois de certo tempo em tal estado, levantou-se, como se estivesse acabando de sair de um transe, um estado sonolento profundo. Foi até o balcão da taverna e pediu um bom vinho, se possível dos mais velhos. O taberneiro, já com a paciência esgotada de trabalhar a noite toda, quase o escorraçou de lá. Falou várias ladainhas, dessas que só se escutam em tavernas.
Talvez a forma mal trapilha do velho devesse causar uma má impressão a quem o visse. Pensou ele ser o motivo de tal atentado. Ele se explicou:
- Caro colega, não vim discutir com vossa senhoria. Não sou nenhum desses transeuntes que por aqui passam. Quero apenas uma taça de um bom vinho. Nada mais.
O andarilho agradeceu ao taberneiro e entregou-lhe as moedas pagas pela taça, que quando as viu tratou logo de ir buscar a taça e enchê-la de vinho. O velho homem escorou-se no balcão e tomou calmamente o vinho, enquanto a taverna, cheia de fanfarrões como disse, continuava o barulho ensurdecedor. Depois da taça, pediu licença ao taberneiro e se retirou, deixando a taverna e seus barulhos para trás.
Ao sair, percebeu que já se aproximava o alvorecer. Já era hora de voltar à pensão, afinal a noite foi bastante longa.


II – Encantos oníricos

Estava andando pela rua, já havia clareado um pouco. Seus olhos pareciam lacrimejar um pouco, seu rosto estava mais vivaz, mais rubro. Viu-se diante de um jardim florido, numa linda praça, com os pássaros anunciando a chegada do sol. A bela visão fez com que o homem andasse mais depressa ao encontro de tal majestoso local. Se estivesse no deserto, diria que era um oásis.
Que belo lugar! Apesar de certo estado de embriaguez, podia garantir que sempre passara por aquele local, mas nunca tinha percebido sua beleza! Entregou-se aos encantos doces de tal paisagem. Parecia um desbravador naquele local, quis conhecer a área onde estava situado, e preocupou-se logo de começar a andar em volta.
Quantos dias em sua vida teriam de ser pagos por uma visão como aquela? Nada no mundo poderia ser maior do que aquilo à sua frente! De súbito, viu-se tremendamente errado quanto às frases antes ditas. Na verdade, seus olhos pararam na visão mais bela que podia um homem ter visto em toda sua tenra existência.
Era incrível o encanto sentido naquele doce momento. Ela estava lá, andando por entre as flores. Parecia se confundir com elas, tal era sua beleza. Majestosa. Imponente. Ele sentiu-se fraco, incapaz diante dela, embora estivesse bastante longe dela. Não acreditou. Não dava pra ver direito. Não era possível, era uma ilusão! Tentou chegar mais perto, andou um pouco, até seus olhos verem com nitidez. Não era ilusão. Tentou chegar mais perto, suas pernas não conseguiam se mover, parecia um velha estátua.
Ela se virou. Ah! Que encantadora! Ele sentiu certa vertigem ao vê-la. Era realmente de uma beleza estonteante, qualquer homem ficaria em tal estado. Seu coração estava cada vez mais acelerado, suava frio, não se movia... Tentou mais um passo, nada. A imagem que estava diante dele parecia agora se distanciar. “Oh, não! Não façais isso com este pobre homem que te suplica! Diz-me pelo menos teu nome, se é que tens nome, ó linda criatura encantadora!”
Tentou correr atrás dela, suas pernas nem se moviam direito, no primeiro passo dado caiu... E acordou.



III – Do encontro

Qual não foi sua decepção ao ver que tudo se passava num sonho? Parecia ter raiva de si. Porque acordar de um sonho tão lindo como aquele? Ah, se pudesse voltar ao sonho, ver de novo a imagem da linda mulher ali presente. Lamentou por todo o resto do tempo ter acordado de tal visão. Afinal, quem era ela? Isso se ela realmente existir, é claro. Não idealizara tudo aquilo?
Abriu a janela. O dia já estava mais claro. O sol que antes estava encoberto por nuvens agora já se deixava ver, penetrando em seus raios as janelas dos cômodos. A velha casa onde havia se instalado desde alguns meses atrás, para ser mais preciso desde que chegou à pacata cidade, mantinha um jardim perfeitamente cultivado, junto a um pomar, de onde se tirava a refeição dos inquilinos. Havia também uma fonte, decorada por uma estátua angelical em seu centro.
Seu aposento era pequeno, mas bem decorado lugar. Tinha apenas a cama e um pequeno armário, a janela e o seu pequeno baú. Desceu com certa pressa a escada, logo chegou ao lado de fora da pensão. Banhou seu rosto com a água da fonte, despertou um pouco sua expressão sonolenta. As imagens de seu sonho não lhe saíam da cabeça. Tratou logo de apressar-se e ir colher alguns frutos para a ceia matinal. Estava com fome.
O pequeno pomar cultivado era bem produtivo, dava bons frutos e era comum à todos da casa. Cada um tinha uma tarefa, afinal, estavam ali alojados e tinham que contribuir de alguma forma. Às tarefas que lhe eram incumbidas, o andarilho fazia com total gosto. Era muito cuidadoso com o pomar e um pouco ciumento quanto a seu aposento. Fez suas tarefas bem feitas, como sempre, mas as imagens não lhe saíam, nem sequer conseguia se distrair direito, tudo a lembrava.
Passara o resto do dia recluso em seu quarto, lembrando do sonho que teve na noite passada. Que grande sorte a dele sonhar com tal ser! Sentiu certa avareza, ao pensar em tal musa. Queria só pra ele os prazeres oferecidos por aquela encantadora. Mas, como pensar nisso, se foi tudo um sonho? Oh! Que profundo pesar abateu-se em sua alma ao passar por sua cabeça tal raciocínio! O pôr-do-sol de aproximava quando o velho andarilho decidiu sair de seu quarto. O salão de festas do casarão estava repleto de gente, para todos os gostos. Haviam mesas cheias de frutas e bebida. Ignorou por completo tal situação e saiu às pressas.
No seu caminhar notava-se um profundo ressentimento. Seus passos agora lentos e sempre silenciosos faziam dele quase um ancião. Parecia uma pobre alma a penar e assombrar a cidade. Com o velho tempo de outono, o vento estava um pouco mais frio do que o habitual, e era forte. Haviam folhas caídas por todos os lados, as árvores estavam desnudas. O céu já dava menções de que logo iria escurecer. Era o prenúncio de uma noite longa para o velho. Queria ele não mais ter acordado depois do sonho! Que bela imagem de fim de vida teria ele! Na tranqüilidade serena, na qual iria descansar, e com a mais bela vista jamais imaginada! Viu o orgulho bater de fronte a seu peito nessa hora.
Em sua penosa caminhada, não observara as belas paisagens ao longo de seu trajeto, coisa que tanto gostava de fazer. Era capaz de morrer de desgosto no estado em que estava? Não sabia, mas sentiu lá no fundo uma pontada. Queria isto dizer que sim? “E porque não morri antes de ter acordado!” Aceitaria com total resignação aquele primeiro fim depois do sonho!
A noite já caíra. Procurou um lugar para ficar. Avistou uma bela praça, florida, com bancos de mármore. Procurou sentar-se em um dos bancos. Um casal andava pela praça tranquilamente, de mãos dadas. Dois enamorados, laçados pelo destino! O andarilho sentiu cair uma lágrima quando viu o casal. Quanta angústia se debatia em seu ser! Será que algum deles sabia o que se passava com o outro, ou estavam juntos por simples idéia de estar? Ah, nada no mundo lhe fazia tanta falta quanto aqueles doces minutos (ou segundos?) que passara sonhando! Em seu lugar qualquer um sentiria o mesmo. Desatou a chorar como uma criança quando lhe tiram os doces. Se nos déssemos conta do que se passa em tais situações!
Saltou desesperado do banco. Estava agora em profusa loucura de espírito. Corria vagamente sem direção certa. Aquilo o consumia de dentro para fora. Seu estado exterior era péssimo. Quem o visse de fora diria que era maluco, um lunático. Mas ninguém sabe quais as verdadeiras razões que movem o espírito humano para tal ponto. Sabe-se que após essa noite na praça, nunca mais foi visto o pobre velho andarilho.

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